Como Primavera do Leste (MT) se transformou em polo de teatro infantil e jovem

Por Dib Carneiro Neto – www.pecinhaeavovozinha.com.br
O teatro que pulsa nas veias da juventude de… Primavera do Leste.

Cidade do interior do Mato Grosso mantém um festival de artes cênicas há 12 anos, o maior de todo o Estado, e virou um polo importante de produção de espetáculos voltados para a infância e a juventude, a partir do trabalho persistente do grupo Teatro Faces, dirigido pelo secretário de cultura do município, com total apoio do prefeito, que não hesita em deixar seu gabinete para engrossar as plateias das peças encenadas. Conheça um pouco dessa história de amor ao teatro, que contagiou a população jovem primaverense.

Encravado na Região Sudeste do Mato Grosso, a 240 km da capital (Cuiabá) e com uma população de apenas 61 mil habitantes (IBGE 2018), o município de Primavera do Leste deixou de ser distrito e passou a ser cidade no dia 13 de maio de 1986, ou seja, há apenas 32 anos. Na década de 1960, chamava-se Bela Vista das Placas (distrito da vizinha Poxoréu). Na hora de virar município, quase se chamou Primavera D’Oeste, mas geograficamente, em relação à localização no Estado, seria um erro. Também quase se chamou Nova Primavera e Alto Primavera.

Pois foi nessa cidadezinha (que já apareceu até em um Globo Repórter sobre ‘terras de oportunidades’) que eu tive a grata surpresa de conhecer um festival de teatro já em sua 12.ª edição. Resistente, persistente, um festival teimoso, um oásis de talento e interesse pelo teatro, em pleno “Brasil Profundo”, pode-se dizer. Um festival de teatro prestigiado com muito interesse pelo Prefeito da cidade (Leonardo Bortolin), que comparece em vários espetáculos, com um entusiasmo de menino. Um feito incomum. Autoridades e políticos não costumam freqüentar plateias de festivais teatrais…

Prefeito Leonardo Bortolin.

Ao mesmo tempo, é um festival que passou a ser ignorado pelo Governo Estadual, na hora de destinação de verbas para eventos culturais do Mato Grosso. Pena. Das 12 edições, só 3 tiveram apoio do Estado. Mas nem por isso os amantes das artes cênicas esmoreceram em Primavera do Leste. O festival continua a existir, nesse pequena cidade em que – me contaram – 1% da população diretamente trabalha/se dedica/pratica teatro. Um alento, um sopro de esperança – tendo em vista que, nas últimas eleições, mais de 80% dos eleitores primaverenses preferiram votar da forma mais conservadora.

Primavera do Leste, afinal, se salvará pelo teatro – e pela juventude de cabeças saudáveis e abertas que faz acontecer anualmente o chamado Festival Velha Joana, o maior encontro de artes cênicas de todo o estado do Mato Grosso. Esse nome, Velha Joana, veio de uma personagem muito peculiar daquela localidade, Joana Cândido de Melo, a primeira moradora de Primavera do Leste. Até bem pouco tempo, pensava-se que sua história era uma lenda, mas foi comprovada a sua existência. Velha Joana viveu ali, em um imenso cerrado, por um bom tempo sozinha, isolada, sem nenhum outro sinal de civilização. Hoje, seu túmulo foi reconhecido como patrimônio histórico da cidade.

Wanderson Lana: na cerimônia de encerramento do festival, no dia 11

 

 

 

 

 

 

A XII edição do Festival de Teatro Velha Joana reuniu em Primavera do Leste, entre 1.º e 11 de novembro, 500 atores e técnicos da área das artes da cena. Em dez dias, a população pôde prestigiar 60 espetáculos – tudo com entrada franca. Neste ano, o evento fez uma homenagem póstuma à educadora e artista plástica Evangeline Takeushi. O rosto da ativista cultural de Primavera do Leste estampava o cartaz, os banners, os folhetos de programação. “A professora Evangeline sempre foi um membro ativo do conselho de cultura e era espectadora assídua dos nossos festivais”, explicou o secretário municipal de Cultura, Wanderson Lana, a figura central em torno de quem todo o festival se estrutura e se organiza.

Lana, que também é ator, diretor, dramaturgo premiado e professor de teatro, é o curador e organizador do festival, desde o seu início. Ele também faz parte, como um dos diretores artísticos, do grupo Teatro Faces, um coletivo surgido em 2005, que, além de ministrar aulas regulares de teatro para crianças e jovens, já se reproduziu em três núcleos (os iniciantes, os jovens e os veteranos). Cada um desses núcleos produz seus espetáculos próprios. A cidade, diga-se, mantém em funcionamento regular escolas de teatro, de dança e de música, geridas pela Prefeitura. Um exemplo que deveria ser seguido por todo município brasileiro. No Primeiro ano da Escola, em 2009, eram apenas 16 alunos divididos em 02 turmas. No ano seguinte já eram 230 e no ano posterior 685 alunos, ou seja, mais de 1% da população frequentando aulas/oficinas de teatro.

A cia. Teatro Faces, explica Wanderson Lana (vencedor deste ano do Prêmio Funarte de Dramaturgia, com seu criativo e impactante texto Ensaio sobre a Verdade), estuda prioritariamente o drama para infância e juventude, buscando estabelecer reflexões diante de situações de perda, decepção, fracasso e até mesmo a morte. As escolhas de repertório sempre procuram passar por essas questões. Houve uma época em que todos os alunos de teatro de Primavera do Leste debruçavam-se obrigatoriamente sobre as leituras de clássicos do saudoso Vladimir Capella (1951-2015), encenador paulista que brilhou com suas montagens criativas que primavam por enfrentar com garra os chamados temas tabus do teatro infantil. Mais uma evidência do quanto Primavera do Leste consegue ser exemplar quando o assunto é teatro. Os atores, diretores e mestres Ana Paula Dorst, Darci Junior, Dionathan Pessoni, Edilene Rodriguez, Kiko Sontak , Yuri Lima Cabral, Rafaela Salomão e Néia Lourenço são alguns dos ativos participantes do Teatro Faces, ao lado de Lana.

Passáro de Papel

Quando a gente ouve dizer que uma peça será interpretada por crianças, logo se imagina que será uma daquelas apresentações bem amadoras, típicas para agradar pais e parentes dos atores mirins em confraternização de fim de ano da escola. O que vi em Primavera do Leste foi, ao contrário, de “cair o queixo”. Dou como exemplo máximo do talento das crianças o espetáculo Pássaro de Papel, encenado dentro de uma piscina, com direção e adaptação de texto pela professora de teatro e atriz do Teatro Faces, Edilene Rodriguez. A peça é uma iniciativa da Escola Municipal de Teatro/Projeto Escola de Teatro Faces – Polo EMEF 13 de Maio.

Em uma piscina? Sim. “Primavera do Leste ainda não possui o espaço físico de um teatro, mas já está em processo de licitação para ser construído em 2019”, comenta Lana. “Isso fez com que os espaços alternativos da cidade se transformassem em cenas paras as apresentações. Árvores, casas, praças, terrenos, galpões, parquinhos, piscinas, quintais e a própria rua. O teatro pulsa em inúmeros lugares da cidade.”

Em Pássaro de Papel, Edilene Rodriguez conseguiu a proeza de fazer as crianças verdadeiramente interpretarem, em vez de apenas decorar e despejar suas falas sem envolvimento nenhum com o jogo teatral. As crianças do elenco são incríveis. Falam o texto com ótima projeção de voz, garra e convicção, de um jeito bem melhor do que muito ator adulto. O principal é que elas mergulham num mundo de fantasia e imaginação que é essencial para sua formação e muito rico em termos de estímulo à criatividade. Não há lição de moral, ranços didáticos, chatices de sala de aula. O espetáculo é divertido, emocionante e muito bem interpretado pela garotada de Primavera do Leste. A piscina – local de total adesão pelas crianças em suas atividades esportivas e recreativas – vira espaço cênico envolvente, inusitado, lúdico. Um grande achado, que tem tudo a ver com a pesquisa da professora Edilene sobre a valorização dos espaços de brincar.

Pedro Malasartes e o couro misterioso

O conceito de “teatro infantil feito para toda a família” foi totalmente compreendido e praticado em Primavera do Leste, ou seja, se a peça for boa ela atrai não só as crianças, mas os adultos também. Foi assim com Pedro Malasartes e o Couro Misterioso, uma empolgante encenação regionalista, apoiada em tipos da cultura popular, com texto e direção de Wanderson Lana. O humor ingênuo dá o tom do começo ao fim, encantando a todos, com muito profissionalismo e entrega total dos atores.

E o que dizer dos jovens (adolescentes) do grupo, o chamado ‘Faces Jovem’? Uma festa de energia, emoção, garra, espontaneidade e talento. Uma juventude completamente entregue às artes cênicas, que tem o que dizer, sabe o que quer e não tem medo da liberdade de ser. Saí de lá em estado de graça, por notar bem de perto que, se depender do pensamento de jovens como os do elenco do Teatro Faces, o Brasil ainda tem jeito, ainda tem esperança e espaço para o amor e as artes.

Alice

Dois dos espetáculos desses jovens me cativaram do começo ao fim, ambos também a cargo do dramaturgo e diretor Wanderson Lana, um multi-artista luminoso e competente, da estirpe que a gente precisava ter pelo menos um em cada cidade, para que o bom teatro não morresse nunca. Um desses espetáculos jovens, Alice, fala do bullying sofrido na escola por uma menina que fisicamente nasceu menino. É uma encenação forte, dolorida, engraçada, catártica e libertadora. Alice já foi apresentada em muitas ‘praças’, mas merecia ainda viajar o País todo, por essa temática urgente e necessária, explorada com delicadeza, graça, poesia e humanismo.

Romeu e Julieta para Avisados

Outra montagem jovem que muito me impressionou foi a versão de Lana para a peça expoente do amor romântico na carreira de William Shakespeare, Romeu e Julieta, que em Primavera do Leste foi batizada de Romeu e Julieta para os Avisados. Menino com menino, menina com menina, música contagiante, vigor, vigor, mais vigor… Assim é o espetáculo, que envolve o público em uma verdadeira celebração da diversidade ao ar livre, em torno de barracos de madeira, remetendo à vida nas comunidades carentes. Shakespeare se orgulharia muito. Adolescentes falando para adolescentes assuntos que são urgentes.

In-Próprio para Dinossauros

Dentre os espetáculos para adultos que vi, vindos de fora de Primavera do Leste, para a Mostra Oficial do 12.º Velho Joana, gostei demais de In-Próprio para Dinossauros, do grupo In-Próprio Coletivo, de Cuiabá. Em cena, Daniela Leite e Karina Figueredo, também diretoras e criadoras do espetáculo, dão um verdadeiro show de repúdio ao machismo e à misoginia, com uma dramaturgia espertíssima que trafega convulsivamente entre o biográfico e o ficcional. Entre os infantis convidados de fora, destaque absoluto para Ogroleto, do Pavilhão da Magnólia, de Fortaleza (CE), sobre menino ogro que vai à escola pela primeira vez e sente impulsos de ‘comer’ as outras crianças. Temática forte e ousada, quebrando com inteligência e criatividade todos os tabus temáticos do teatro infantil.